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Não me incomodo muito com o Hospício,
 Mas o que me aborrece é essa intromissão
 Da polícia na minha vida.
 De mim para mim,
 Tenho certeza que não sou louco;
 Mas devido ao álcool,
 Misturado com toda espécie
 De apreensões que as dificuldades
 De minha vida material, há seis anos,
 Me assoberbam,
 De quando em quando
Dou sinais de loucura,
 Deliro”.

Lima Barreto
Diário do Hospício
















Marquês de Sade 


Em 15 de novembro de 1956 iniciava-se um processo criminal em Paris, o réu, Donatien Alphonse François, ou melhor, o Marquês de Sade, também conhecido como Divino Marquês por uma pequena parcela de intelectuais e artistas. Tal processo fora iniciado devido à tentativa de um editor - Jean Pauvert - de lançar em edição as obras completas do Marquês. O tribunal mostrava-se contrário, porquanto desde o início do século XIX as obras mais picantes de Sade eram tidas como capazes de destruir o corpo e a alma de qualquer leitor. 

Entretanto depois de as acusações serem apresentadas, aceitou-se o contato do público com a inteligência selvagem do Marquês. De acordo com sua filosofia alternativa, escrita durante o período que esteve recluso, nenhum Deus, moralidade, afeição e esperança deveriam existir, apenas a extinção humana num delírio erótico terminal. O homicídio, a sodomia, o incesto etc., seriam os meios capazes para a obtenção desse fim. A partir disso, considerou-se que o fulcro da obra sadeana fosse a perversão, porém, o constante aparecimento da Providência - Deus - em todas as suas obras, desmascara o verdadeiro ponto principal: o ateísmo intelectual, sendo o único Deus a natureza, para a qual segundo Sade, o bem e o mal não são aspectos antagônicos, mas sim essenciais para a manutenção do equilíbrio.

2. Período de Formação
OBS.: Não se objetiva aqui dar a biografia detalhada do marquês, mas sim desenvolver os aspectos principais de sua obra de acordo com o contexto de sua criação. Apenas a fim de esclarecer o seguinte observa-se que Sade foi preso por libertinagem excessiva.
A importância da prisão na prosa sadeana é grande, posto que treze anos de vivência na cadeia acham-se refletidos na brutalidade de seus heróis fictícios. O inverno de 1778 foi decisivo na formação do processo mental do marquês. Imaginando jamais ser solto, Sade começou a escrever cartas desesperadas a sua esposa. Após esse momento de desespero, começou a construir um mundo próprio dentro dos confins de sua cela; suas cartas já não refletiam a preocupação com uma possível soltura, mas traziam novas observações. Sade pede a sua esposa que lhe envie livros e materiais para escrever.
Ele não seria o triste e suplicante prisioneiro, mas o defensor de sua causa. Não ficaria louco, mas chocaria as mentalidades através de sua brilhante clareza intelectual, empregando a sanidade contra seus inimigos. "Eu sou um libertino, mas não sou nenhum criminoso ou assassino", declarava Sade em suas cartas a Renée- Pélagie, começando a destacar suas ânsias sexuais e crenças filosóficas, e dizendo que a primeira coisa a ser feita após sair da prisão seria beijar-lhe todo o corpo e ler Buffon, Voltaire e Rousseau. Sexo e literatura começavam a se equilibrar em sua mente. Em determinada carta, Sade critica as posições da mãe de Renée acerca da inviolabilidade do ânus feminino, relembrando os prazeres que dele podiam ser usufruídos.
Por volta de 1784, observa-se que o alter-ego do marquês realmente começa a entrar em cena. Diz em outra de suas cartas, que "a prisão é um lugar de maldade. A solidão que aqui impera dá poder a certas obsessões e o transtorno que uma semelhante força produz torna-se mais rápido e inevitável.
Não há nenhum marco cronológico que explicite a partir de quando, Sade, além de ser um prisioneiro, torna-se um escritor. Mas o que surgia cada vez mais de sua correspondência era a vigorosa manifestação do intelecto, particularmente em questões filosóficas. Sua esposa se recusava a enviar-lhe as Confessions de Diderot, mas ele lera Voltaire, o qual, apesar de aceito, era criticado em pontos concernentes ao Cristianismo. Também lera La Mettrie, autor de L'homme Machine (1748), cujas idéias exerceram grande influência sobre ele. O homem , de acordo com La Mettrie, deve ser definido em termos de evidência científica e experimentação. No que diz respeito ao ângulo científico, toda a atividade humana pode ser explicada sem recorrer a conceitos como alma e/ou espírito. Adotando a hipótese de La Mettrie, Sade ignorou o fato de que o mesmo considerara tanto a existência de Deus quanto a da imortalidade da alma prováveis, embora não corroboráveis cientificamente.
"A glândula pineal é onde os filósofos ateus colocam a sede da razão humana", escreveu a Renée. Ele se fixou no sistema de La Mettrie, e o elaborava em seus próprios modos. Voltara a escrever peças, as quais, exatamente como seus romances, registrariam os pesadelos sexuais particulares de seu encarceramento. O Cerco de Beuavais, mostrava a dramaturgia patriótica de Sade. Oxtieren, ou A Queda da Luxúria, apresentava-o como desconfiado moralista. Com raras exceções, suas peças foram rejeitadas, reescritas e novamente rejeitadas pelos teatros do período revolucionário.
Não obstante ocupado em escrever peças, em 1782 Sade já se preocupava em expor com maior clareza sua produção como filósofo ateu. Em Diálogo entre um Sacerdote e um Moribundo observam-se características já realmente marcantes do modo sadeano de pensar e ver o mundo: após morto, o moribundo descrente é tomado por seis belas mulheres que passam a corrompê-lo, "ensinando-lhe a corrupção da natureza". O moribundo, nesse caso, observa que o crime e a virtude são meros processos da natureza, um argumento a partir do qual Sade desenvolveu em termos como vício e virtude, ou crime e moralidade, eram sem sentido no universo mecanicista de La Mettrie, para o qual uma explicação racional do universo pode ser compatível com a idéia de Deus. Foi essa "fraqueza" particular do materialismo de La Mettrie que Sade procurou desenvolver. As conseqüências de rejeitar a crença numa ordem divina trazem um substituto para Sade, a natureza passa a ocupar o lugar de Deus. A única moralidade era a da natureza, a qual não ligava para o absurdo das convenções humanas segundo as quais certas coisas são tidas como criminosas, diferente do que ocorre no restante do universo animal. Logo, todos os extravagantes desejos sexuais de Sade tornam-se razoáveis e até racionais. Mesmo sem procriação, e com a conseguinte extinção da humanidade , não haveria diferença para a natureza, porquanto os cadáveres entrariam em decomposição, fornecendo à natureza energia para uma nova forma de vida.
Entretanto, boa parte das perversões desfiladas em sua obra ficcional não condiziam com seu comportamento. Observa-se que a obra de Sade não apresenta uma filosofia contínua e inalterada. Para ele, apesar das críticas feitas ao Antigo Regime em Justine, a revolução de 1789 também foi uma experiência por demais desenganadora, cuja nova ordem é zombada em As Prosperidades do Vício. Não obstante, apesar desta filosofia ateísta, Sade precisava manter o seu lado público, dizendo opor-se a crueldade e defender a república que lhe sucedeu, assim como apoiar as instituições estabelecidas.
 
3. Escritos da Bastilha
Em 1783, em outra carta à sua esposa, confessa que "o lado mais sombrio de sua natureza estava estabelecendo rápido e permanente controle sobre sua mente". Mas antes de tal fato se consumar literariamente o Marquês foi transferido da sua atual prisão (Vincenmes) para uma nova, a Bastilha. Nessa cela, em 1785 inicia a redação de seu primeiro romance, Os 120 Dias de Sodoma, começando do seguinte modo:
"As grandes guerras que impuseram tão pesado fardo a Luís XIV esgotaram tanto os recursos do tesouro quanto do povo. Mas mostraram também a um bando de parasitas o caminho da prosperidade. Tais homens estão sempre a espreita de calamidades públicas, que não se preocupam em aliviar, antes procurando criá-las e alimentá-las a fim de que possam tirar proveitos dos infortúnios alheios."
Entre os homens supracitados, Sade tirou seus quatro heróis ficcionais (em sua maior parte religiosos) que iriam recolher-se durante o inverno no castelo de Silling, junto a uma série de pessoas visando dar-lhes toda a assistência em matéria de libertinagem. Esses 120 dias dividem-se de acordo com os tipos de vícios a serem executados: paixões simples, paixões complexas, paixões criminosas e paixões assassinas. Mais do que o relato incessante de desvios sexuais, é a criação, no romance, onde Sade parece desenvolver seu próprio mundo, onde o prisioneiro é o senhor. Um lugar onde "já não há repressões, já não há obstruções. Não há nada a não ser a consciência.". Só a primeira parte do livro foi escrita, o restante foi desenvolvido em anotações.
O romance seguinte, Aline e Valcour, o qual ocupou os três próximos anos de sua prisão, tem a forma de uma troca de cartas entre o herói e a heroína do título, cuja felicidade é frustrada pela determinação de seu pai em casá-la com um velho devasso. Se há alguma coisa no romance que seja peculiarmente sadeano, é a história de Sainville e Léonore, que é contada como uma longa interpolação no meio da tragédia de Aline e Valcour. Há muito que Sade se deixara fascinar pelas excentricidades tanto do comportamento social quanto sexual nas remotas partes do mundo. Ele se interessara particularmente pelos descobrimentos do capitão Cook. Tal esquema, possibilita a Sade se utilizar de aspectos culturais para tratar de novas perversões, entre elas, a antropofagia. Nesse romance, Sade repisa o tema do absurdo que para ele se constituía em tentar estabelecer códigos de moral, posto que para ele, o que é virtuoso em uma outra parte do mundo, é considerado abominável em outra.
Um ato virtuosos não era apenas sem sentido em si, mas, num universo regido pelo que os incultos chamam de vício, essa pretensa virtude era tratada com violência tanto pelo homem quanto pela natureza. Há dois aspectos dedutíveis a partir disso:1) a moralidade e a religião são negadas pelos próprios princípios da natureza; 2) os sofrimentos da virtude são permitidos por Deus para serem recompensados na outra vida. Apesar disso, a vitória da virtude é retratada no próximo livro de Sade, Justine, Os Infortúnios da Virtude. Entretanto, ironicamente, também pode se observar o prazer encontrado em grande parte das personagens em maltratar uma garota virtuosa e religiosa. Independente da intenção verdadeira do autor, ele chegou através do argumento antireligioso a um ponto que os pensadores do Iluminismo pouco trataram. Insistia que a moralidade, separada da religião, feneceria; sendo então impossível haver leis superiores às da natureza e do instinto às quais o moralista pudesse apelar. Sugerir que um instinto é mais criminoso ou virtuoso que o outro é um absurdo lógico. A humanidade deve escolher entre dois destinos alternativos. Deus e a moralidade devem ser dispensados ou mantidos. Um mundo sem Deus e, conseguintemente, sem qualquer justificativa para a moralidade, era precisamente o que a ficção de Sade buscava relatar. A moralidade não é indipensável, mas, se deve ser mantida, só o pode na base da autoridade divina.
Semelhante à Justine, também são as pequenas histórias intituladas Contos de Amor, nos quais Sade aproveita-se consideravelmente de seus conhecimentos acerca da tradição e do quotidiano franceses. Tanto Justine como os contos supracitados não trazem os excessos explícitos de Os 120 Dias, entretanto, além dessa escrita pública, Sade continuava a produzir textos que denunciavam claramente todas as formas de religião e virtude, admirando apenas a natureza, entre eles, A Verdade.
 
4. O Divino Marquês e a Revolução:

Representação da queda da Bastilha, marco da Revolução
No ano de 1788 começaria o ataque direto à autoridade real. A aristocracia francesa, que perdeu para a coroa boa parte do seu poder político, juntava esforços para restaurar sua condição. Se a nobreza queria reforma, os comuns também a queriam. Quando o rei concedeu que empreendesse a reforma, os comuns imediatamente exigiram paridade de representação com a nobreza. Em janeiro de 1789 houve uma eleição, já sob o sistema reformado, na qual aproximadamente um quarto da população votou. Os Estados Gerais foram determinados diante da autoridade real.Em junho de 1789,estava claro que Luís XVI já não controlava a avalanche democrática. Suas tropas moveram-se em direção a Paris, tendo recebido ordens para dispersar a multidão envolvida no tumulto da Praça Luís XV. 
A situação política complicava-se ainda mais devido ao fracasso da economia, ao exorbitante aumento do pão, à invasão de Paris por trabalhadores famintos que ali esperavam achar meios de sobrevivência. Inicialmente, os burgueses e o povo tinham objetivos bem diferentes. Mas, no final de junho de 1789, apenas dias seriam necessários para a realização das ambições políticas ca classe média.
Sade, acompanhava todo o movimento de sua cela na Bastilha, A Torre da Liberdade, chegando a crer que fosse libertado, para tal, improvisa um alto-falante e se dirige à multidão ao redor da Torre, insistindo para que assaltassem a Bastilha antes que atrocidades iminentes se efetuassem. Porém, dez dias antes da queda da Bastilha, o marquês é removido para o manicômio de Charenton, sendo os outros prisioneiros postos em liberdade.
Em 1790 a primeira Assembléia Nacional reuniu-se em Paris. O marquês não era o tipo de figura que suscitasse simpatia entre os revolucionários. Mesmo sem nenhuma esperança de ser libertado, em 2 de abril viu-se livre, posto que fora emitido um ato de anistia aos presos pelo regime anterior por força das lettres de cachet. Nesse caso, sua primeira urgência era a sobrevivência financeira, os primeiros atos revolucionários haviam secado suas fontes.
A riqueza e o título da família Sade eram perigosas, tornando-o suspeito aristocrata; logo Sade viu-se obrigado a trabalhar, voltando-se ao teatro, com a vantagem de possuir um grande número de peças já escritas. Submetia-se peças ao novo regime através da leitura da mesma diante dos membros de um teatro, o qual posteriormente procederia uma votação. Alguma peças foram aceitas, mas houve adiantamentos e nenhuma peça foi produzida. A penas a peça O Subornador fora realmente encenada, mas altamente vaiada por um grupo de revolucionários. O único modo de Sade ganhar dinheiro seria através de suas antigas rendas.
Para tanto, Sade começou a manter correspondência com seu antigo advogado Gaufridy, tentando reaver alguns lucros sobre suas terras em La Coste. Em suas cartas dizia adorar o rei, mas execrar os abusos cometidos durante o antigo regime. A única revolução a que daria o seu consentimento voluntário seria a que propusesse uma constituição do tipo inglês. Sendo aristocrata, a idéia de se aliar a população revolucionária - cujos integrantes eram descritos em suas cartas como idiotas ou criminosos vulgares - parecia-lhe extremamente desagradável. Entretanto, em uma correspondência de julho de 1791, observa que também há os revolucionários burgueses, para os quais a revolução seria apenas um meio de promover suas próprias carreiras. Acerca desses, Sade escreve posteriormente em Juliette, dizendo que não tem o menor interesse em qualquer tipo de bem-estar além do próprio, sendo a revolução apenas o meio de transferir os poderes do governante atual para eles. É óbvio que Sade não poderia emitir tais opiniões publicamente, logo, passa a simular respeito por organismos públicos como a Assembléia Nacional, tomando suas primeiras precauções contra a possibilidade de ser denunciado como contra-revolucionário.
Sade vivia na Section de Piques, tornando-se ativo e posteriormente secretário da mesma . Também tornou-se membro da Guarda Nacional. Era altamente solicitado como autor e como secretário, tendo sido nomeado pela seção comissário para a administração de hospitais. Através desse estratagema, Sade passou a gozar de certa influência e prestígio.
Como panfletista, Sade produziu seu primeiro trabalho em decorrência da fuga de Luís XVI em junho de 1791, aproveita-se de tal fato para redigir Uma Alocução de um Cidadão Francês ao Rei de Paris, no qual, apesar de reconhecer a traição real, continua dizendo que a única solução para a França é a monarquia. "A França jamais pode ser governada a não ser por um rei. Mas o governo de um rei deve ser aceito por um povo livre, e ele deve permanecer fiel à lei desse povo".
Após os massacres de setembro de 1792, Sade continuava a pregar a democracia revolucionária em seu trabalho Idéias sobre a Maneira de Sancionar Leis, cujo texto é feito de acordo com as instruções da Séction de Piques. Louva os que tomaram o poder das mãos dos revolucionários que apoiavam a monarquia. É curioso ver Sade como um autor da Revolução, publicando panfletos por cujo conteúdo não era totalmente responsável. Escrevera a seu advogado dizendo que o maior bem consistia em poder viver sem os outros, não obstante a Revolução exaltou uma obrigação do coletivismo.
Pensando no controverso caráter do marquês, é curiosa sua observação acerca dos massacres de setembro de 1792, porquanto ele poderia ter participado a fim de dar liberdade a seus desejos recônditos. Em vez disso, observou que o comportamento daqueles que propunham ser os líderes do povo, dizendo que o que realmente ocorria era uma fome desmesurada de poder, assim como um desejo de violência. Vista a experiência de Sade na revolução, não é de todo improvável que os horrores descritos em Juliette sejam baseados nas violências de setembro de 1792.
No início de 1793, algum tempo após o degolamento do rei, Sade começou a ser visto como anti-patriótico e contra-revolucionário, e o Comitê de Segurança Pública começou a ouvir rumores de que Sade era culpado de opinar que a utopia a que o novo regime se propunha era de qualquer modo inevitável. A fim de melhorar a sua situação, escreve, em setembro de 1793, Alocuções aos Espíritos de Marat e La Pelletier, no qual Sade louva o altruísmo de Marat, o qual desaprova o egoísmo como lei universal; também louva La Pelletier, pela sua coragem em votar a favor da morte do rei. Como facilmente se observa, Sade encobre suas verdadeiras opiniões com o objetivo de salvar a própria pele: critica o egoísmo - tido por ele como verdadeira lei universal - e mostra-se contrário à monarquia.


Em julho de 1793 Maximilien Robespierre ingressa no Comitê de Segurança Pública, suas palavras adquirem grande autoridade sobre o espírito de muitos franceses. "A essência do republicanismo é a virtude", "a Revolução é a transição de um governo de crime para um governo de justiça" e "a natureza é o verdadeiro templo do sacerdote supremo; o universo é o seu templo, e a conduta virtuosa é o meio pelo qual ele é adorado." são frases suas. Apesar disso, a guilhotina é utilizada em grande escala, visando exterminar todos os inimigos da nova sociedade. Nesse contexto, Sade recebeu um mandato do Comitê Revolucionário, o qual ia julgá-lo por atividades contra-revolucionárias. Motivo de acusação: procurar emprego na guarda real em 1791.Foi inicialmente aprisionado no convento das Madelonettes, tendo sido freqüentemente transferido à espera de julgamento. Recebeu acusação formal, sendo finalmente transferido para a casa de detenção em Picpus; sua cela possuindo visibilidade para o espaço em que a guilhotina funcionava. Escreveu a Gaufridy, "vi mais de 1000 homens e mulheres encontrarem a morte para satisfazer o fanatismo de Robespierre pela virtude".

Maximilien Robespierre
Novamente na prisão, o marquês retoma sua atividade como ficcionista, escrevendo Filosofia na Alcova, o qual mostra um deliciar-se com toda espécie de crueldade sexual, justificando o vício e a brutalidade sob a alegação de que tal proceder é republicano, o texto trata-se de uma irônica denúncia à República de Robespierre. O livro desmascara toda e qualquer religião, exceto a de Satã, a bondade e a filantropia são desencorajadas como motivadoras da revolta dos oprimidos. A república da moralidade natural é descrita por Sade em relação à sua atitude para com pretensos crimes; não haverá pena capital aplicada pelo governo, nem em caso de assassinato. É claro que na fase final de sua obra Sade procurava desmantelar a Revolução Francesa, mesmo em Juliette, também se pode observar um semelhança entre a jacobina "Sociedade dos Amigos da Constituição" e a fictícia "Sociedade dos Amigos do Crime".No dia 15 de outubro Sade é novamente libertado vivendo em estado de penúria, tendo sido novamente aprisionado no dia 8 de março de 1801, novamente no manicômio de Charenton, onde se dedicou a escrever romances históricos e a encenar suas peças.


 
Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 165 - 182Bibliografia:ALEXANDRIAN: Sade ou o Terror Sexual in História da Literatura Erótica.  Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed. págs. 200 - 205.ALEXANDRIAN: Os Panfletos Revolucionários in História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed. págs. 207 - 214.
DUEHREIN, E.: El Marques de Sade. Su Tempo. Su Vida. Su Obra. Madrid. s/d.
MORAES, E.: Sade: O Crime entre Amigos. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 245 - 254.
PRADO JR., B.: A Filosofia das Luzes e as Metamorfoses do Espírito Libertino. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 43 - 58.
SADE: Obras Diversas.
TROUSSON, R.Romance e Libertinagem no séc. XVII na França. i






Rubem Alves



A solidão amiga
A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a
casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta,
ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você
deseja é não estar em solidão...
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que
surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho,
ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão
feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas.
De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha.
Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se
lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava
e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se
com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa...
Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era
um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A
noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos
livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por
oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela
cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras.
Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras
e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua
alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro
comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos
da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe
disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente:
eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa,
“parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante.
Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard
iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há
mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho
a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha
solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão
se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade
bruta e morta. Ela tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não
importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que
fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a
vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser
o lugar onde você vai plantar o seu jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta:
Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a
sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar
dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas
são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha
inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“
Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha
enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas
alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros
que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente,
pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão
aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que
as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo,
perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão
com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem
sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar.
Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que
elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer
comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um
artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer
que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas,
voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:
“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não
discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas
abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até
mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos
poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se
em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“
E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o
operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e
falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao
cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado
que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um
humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não
sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento!
Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem
sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de
operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia
no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante
solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário
adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o
seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são
geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo
pela primeira vez e se transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:
“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os
traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e
sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos...
Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde
erraria a verdadeira Cecília...“
Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de
relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília
estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me
faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra
na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino
caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro,
que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem
falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre:
entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em
bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei
nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A
solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com
meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo
que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha
solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As
caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E
aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por
exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...
A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações?
Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos
outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque
nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da
qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é
verdadeira.
Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem
minha solidão feliz.
(Correio Popular, 30/06/2002)